A mediunidade já foi considerada doença mental, mas novos
estudos indicam que “falar com mortos” funciona como terapia
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Uma doença vinda da Europa ameaça a saúde mental da família brasileira. Pior do que a cocaína, a sífilis, o alcoolismo e o socialismo juntos, capaz de induzir a suicídios, estupros, homicídios e à desagregação familiar, ela é a “loucura espírita”, a “doença mediúnica”. O alerta, lançado no final do século 19, partia dos médicos psiquiatras, engajados numa cruzada contra o espiritismo e a mediunidade, que consideravam “verdadeiras fábricas de loucos”.
O espiritismo havia surgido anos antes, em 1857, na França, com a publicação do Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, e não demorou a fazer sucesso no Brasil. Era um mix de ciência, filosofia e religião baseado em informações repassadas por médiuns — pessoas com o suposto dom de comunicação com os mortos. Para a medicina da época, porém, a mediunidade não passava de uma doença mental, possivelmente contagiosa e hereditária. Em 1895, Franco da Rocha, fundador do Hospício do Juqueri, em São Paulo, escreveu que boa parte dos pacientes confinados entre seus muros havia endoidecido por frequentar sessões de espiritismo, “essa nova religião que só tem servido para aumentar o número de loucos”. Três décadas depois, outro médico, C. Marques, iria proclamar em seu doutorado que “o combate ao espiritismo deve ser igualado ao que se faz à sífilis, ao alcoolismo, aos entorpecentes (ópio, cocaína, etc.), à tuberculose, à lepra, às verminoses”.
“Queimarem todos os livros espíritas e se fecharem todos os candomblés” era a solução final pedida pelo médico Xavier de Oliveira, em 1931. E não faltaram autoridades para dar ouvidos às recomendações científicas. O espiritismo passou a ser perseguido tanto pela polícia como pelos Serviços de Higiene Mental dos estados. Até o temido major Filinto Müller, chefe da repressão do governo Getúlio Vargas, quando não estava ocupado torturado inimigos do Estado Novo, arrumou tempo para fechar centros espíritas nos anos 40.
Por trás dos ataques da psiquiatria ao espiritismo estava uma disputa entre concorrentes, explica Angélica Aparecida Silva de Almeida, professora de história do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais, autora da tese de doutorado “Uma fábrica de loucos”: psiquiatria x espiritismo no Brasil (1900-1950) (Unicamp, 2007). “Tanto a psiquiatria como o espiritismo estavam em busca de legitimação, de seu espaço cultural, científico e institucional dentro da sociedade brasileira”, afirma a historiadora. Segundo ela, ambos se voltavam para o tratamento de doenças mentais e lutavam para serem reconhecidos como ciência. Os dois grupos abandonaram o ringue no meio do século 20, quando cada qual já havia achado um lugar para se encaixar na sociedade: a psiquiatria “se estabelecendo como especialidade médica reconhecida” e o espiritismo como “uma religião ligada à prática da caridade e ao fornecimento de consolo espiritual”. Cada um no seu quadrado.
“Estados de transe e possessão”
A guerra podia ter acabado, mas a visão da ciência a respeito de pessoas que alegavam ter uma linha direta com o Além continuou basicamente a mesma: papo de gente doida. Embora não falassem mais em queimar livros nem comparassem o espiritismo às verminoses, os médicos da segunda metade do século 20 continuavam a explicar os fenômenos mediúnicos como frutos de transtornos de múltiplas personalidades ou problemas neurológicos. Ainda hoje, debaixo da rubrica de “estados de transe e possessão”, a mediunidade continua a ser descrita como doença mental nas atuais versões da CID (Classificação Internacional de Doenças), da Organização Mundial da Saúde, e do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), da Associação Americana de Psiquiatria, os principais cânones científicos usados para separar a normalidade da loucura.
Tudo o que a ciência acreditava saber sobre a mediunidade, porém, vem sendo questionado na última década por pesquisadores vindos de áreas bem diferentes: psicólogos, neurocientistas, antropólogos, médicos e até estudiosos literários. Nenhum deles conseguiu confirmar (ou desmentir) a origem sobrenatural dos fenômenos mediúnicos, mas uma noção ganhou força: a comunicação com os mortos praticada na mesa branca dos centros kardecistas ou na “gira” dos terreiros de umbanda e candomblé funciona como uma terapia, capaz de rivalizar com os divãs dos melhores psicólogos — não importando se os espíritos existem no Além ou apenas na cabeça dos médiuns. Alguns cientistas vão mais longe e dizem que os terapeutas é que precisam aprender com as técnicas dos grupos religiosos, que há anos cuidam da cabeça de uma população que muitas vezes não tem acesso aos profissionais de saúde mental. “Psicólogo de pobre é pai de santo”, já dizia Zeca Pagodinho.
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