Fantasmas na biblioteca

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Parnaso do Além-Túmulo

Capa da primeira edição de
"Parnaso de Além-Túmulo"

Procurar por espíritos entre as estantes das bibliotecas não é uma missão apenas para os Caça-Fantasmas do clássico-pipoca de 1984. Os estudos literários também buscam sinais do Além na literatura mediúnica, comparando livros “psicografados” de escritores conhecidos com as obras escritas pelos mesmos autores em vida.

O Último Romance de Balzac

Cena de "O Último Romance de Balzac"

Feito fora do ambiente acadêmico, um destes livros, O Avesso de um Balzac contemporâneo, custou dez anos de pesquisa ao psicólogo Osmar Ramos Filho, que encontrou vários pontos de contato entre os textos do escritor francês Honoré de Balzac e a obra Cristo Espera por ti, que Balzac teria ditado do Além para o médium Waldo Vieira. A análise de Ramos serviu de base para o documentário O Último Romance de Balzac, de Geraldo Sarno, vencedor do prêmio especial do júri do Festival de Gramado de 2010.

Como ghost-writer de mortos, nenhum médium se destacou mais do que o mineiro Francisco Cândido Xavier (1910-2002), autor de mais de 400 livros — com os quais nunca ganhou um centavo, pois não achava justo receber por obras que, segundo ele, teriam todas sido ditadas por espíritos. Em seu livro de estreia, Parnaso de além-túmulo, Chico Xavier encarnava uma verdadeira sociedade dos poetas mortos, reunindo 259 textos psicografados de 56 poetas brasileiros e portugueses, como Cruz e Sousa, Augusto de Anjos, Castro Alves e Guerra Junqueiro.

Chico Xavier

Chico Xavier

Na época, não faltou quem considerasse o livro uma fraude, dizendo que o médium se limitava a chupinhar o estilo das obras que os falecidos haviam escrito em vida — ainda que Chico não exatamente o perfil erudito que se esperasse desse nível de plagiador. Em 1931, ano da primeira edição da antologia, “Chico Xavier era um jovem de 21 anos que trabalhava como caixeiro num armazém das 7h às 20h em Pedro Leopoldo, pequena cidade mineira onde sequer havia biblioteca pública e onde ele estudara até o quarto ano do primário”, lembra Alexandre Caroli Rocha, doutor em teoria e história literária pela Universidade de Campinas, que estudou a obra mediúnica de Chico. “Mesmo hoje, contando com os recursos da internet e com as bibliotecas da USP e da Unicamp, tive dificuldade para encontrar livros de todos os autores mencionados na obra de Chico”, lembra.

Em 1944, o que era espiritual virou questão legal. A viúva do escritor Humberto de Campos (1886-1934), de quem Chico Xavier afirmava ter psicografado cinco livros, processou o médium querendo receber a sua parte pelos direitos das obras póstumas do marido. O Judiciário negou o pedido, considerando que a família só poderia pleitear os direitos sobre as obras escritas pelo autor em vida. Depois do processo, Chico voltaria a publicar outros sete livros atribuídos a Campos, mas, para evitar novos problemas com a Justiça da terra, preferiu assiná-los com o pseudônimo Irmão X.

Alexandre Caroli Rocha

Alexandre Caroli: hipótese de fraude não explica livros de Chico Xavier

Caroli fez sua dissertação de mestrado a respeito de Parnaso e, no doutorado, analisou a produção mediúnica atribuída a Humberto de Campos. E descobriu que os textos psicografados continham marcas de autoria dos escritores falecidos, tanto no conteúdo como nos aspectos formais, em um nível que ia muito além da simples imitação. “O autor das obras psicografadas conhecia a obra de Humberto de Campos melhor do que eu, que passei quatro anos estudando o autor em meu doutorado”, compara. Sobre o escritor português Guerra Junqueiro, Caroli afirma que os seis poemas reunidos em Parnaso sintetizam, “de modo extremamente sofisticado”, todas as características do estilo do poeta português, que só viriam a ser explicitadas pela crítica especializada no livro Guerra Junqueiro e a sua obra poética, de Amorim de Carvalho, publicado em 1945, mais de uma década após a aparição post-mortem do poeta no livro de Chico.

E qual foi sua conclusão? “A hipótese do pastiche – que é a hipótese da fraude pura e simples – não me parece sustentável no caso de Chico Xavier”, afirma Caroli, levantando a necessidade de buscar outras explicações. “A hipótese da mediunidade deve ser levada em conta, embora não haja consenso entre os estudiosos do tema sobre como entendê-la.”