Moleque maravilhoso

calvin-haroldo-comecouNada como começar o ano me abastecendo de infância. Fiz isso com Calvin e Haroldo – E foi assim que tudo começou, que peguei emprestado na Biblioteca Monteiro Lobato. O mais legal dessas primeiras histórias é que nunca o Calvin foi tão criança, tão despretensiosamente moleque, sem a pegada mais “filosófica” que as tirinhas ganhariam anos depois. Recomendo para todo mundo.

calvin-haroldoHiperativo, bagunceiro, cheio de imaginação e muito feliz, Calvin não consegue se concentrar na aula porque prefere lutar contra alienígenas ou tiranossauros dentro da própria cabeça enquanto a professora passa a lição. Vivesse hoje, corria o sério risco de ser diagnosticado com transtorno de deficit de atenção e hiperatividade e dopado com ritalina até virar uma criança apática, incapaz de questionar a realidade e condenada a nunca mais ouvir o rugido de seu tigre de pelúcia.

A propósito, o prefácio do livro, escrito por Garry Trudeau (de Doonesbury), já sugeria que Calvin e Haroldo é melhor do que qualquer droga. Leia que é dos bons. Ele compara Bill Watterson a um repórter da infância:

Existem poucas fontes de humor mais confiáveis e perenes que a mente de uma criança. A maioria dos cartunistas, seres infantilizados que são, sabe bem disso. Mas, quando se dispõem a captar o espírito tumultuoso dos pequenos, eles quase sempre trapaceiam. Sem pudor, criam não crianças reconhecíveis, mas adultos em miniatura, irritantes e piadistas. Pode-se atribuir isso a indolência ou falha de memória, mas a maioria das pessoas que escrevem diálogos cômicos para crianças dá mostras de uma surpreendente falta de sensibilidade – ou de fé – em relação ao material que as inspira, isto é, a infância, em toda a sua livre e encantadora exuberância.

É nesse sentido que Bill Watterson se revela tão original quanto seus fantasiosos personagens Calvin e Haroldo. Watterson é o repórter que acertou a mão, conseguindo retratar a infância tal como realmente é, com suas constantes mudanças de sistemas de referência. Todos os que conviveram com crianças pequenas sabem que a realidade pode ser uma coisa muitíssimo circunstancial. A expressão daquilo que um adulto considera “mentira” pode muito bem refletir a profunda convicção da criança, pelo menos no momento em que ela aflora. A fantasia, que lhe é tão acessível, é vivida com tal intensidade e frequência que pais melindrados como os de Calvin têm a impressão de estar sendo manipulados, quando a verdade é muito mais assustadora: eles nem sequer existem. A criança é ao mesmo tempo rei e guardião desse reino, e pode ser muito exigente na escolha de suas companhias.

Naturalmente, esse exclusivismo leva muitos adultos a buscarem recuperar para si as descobertas felizes da infância, o que é, na verdade, uma tentativa de recuperar o irrecuperável. Alguns desesperados fazem coisas que terminam por levá-los a clínicas de desintoxicação.

O resto de nós, mais sensatos, lê Calvin e Haroldo.

O intestino do Andrício

Para falar da obra-prima poética que é O Intestino Eloquente, livro de poemas e tiras de Andrício de Souza, resolvi fazer uns versinhos também.450xN

Um dia avistei o mano Andrício
Que já foi logo falando:
“Véi, me cansei dessa vida
de trampar de cartunista.
Passar fome desenhando?
Vou largar desse suplício.”

Me contou o que pretendia:
“Se é pra viver na pobreza,
Vou assumir a pindaíba
E viverei de poesia.
Serei fodido na vida,
Mas fodido com nobreza.”

Achei que fosse uma piada
(Dessas que vive contando
E a gente dá umas risadas
Pra preservar sua auto-estima).
Mas logo estaria lançando
Seu próprio livro de rimas.

O intestino eloquente
É o nome da produção.
Do autor, dá para afirmar
Que sabe, perfeitamente
E com muita precisão,
Forma e conteúdo encaixar.

Escreve, como ninguém,
Sobre cocô, peido, mijo
Merda, cu, intestino, lixo.
Além de rimar porcarias,
Andrício sabe fazer rimas
Que são porcarias também.

Pois é aí que Andrício supera
Outros poetas da nossa era:
Gente como Glauco Mattoso
Que escreve sobre chulé
Com um soneto garboso,
Métrica e outros rapapés.

Vai, paga os quarenta reais
Desse livro, camarada.
Velhos poetas consagrados,
Que te trazem mais cultura,
Não te divertirão mais
Que o Ed Wood da literatura.

Céu por todos os lados

astronauta beyruth

“E a Maurício de Sousa por emprestar os seus brinquedos”, agradece Danilo Beyruth no final de Magnetar, o romance gráfico que ele escreveu e ilustrou com o personagem Astronauta. E parece que Danilo estava mesmo brincando ao contar do seu jeito uma aventura do personagem de Maurício. Brincando do jeito que criança brinca. Já viu como crianças levam a sério uma brincadeira? São capazes de correr para lá e para cá sem parar durante horas, ou de passar um bom tempo sem mexer um músculo, tudo em nome da brincadeira. E ao mesmo tempo não esquecem que estão brincando, e que tudo só vale a pena enquanto estiver divertido.

Danilo leva a sério a sua brincadeira. Isso a gente vê no traço dinâmico e cuidadoso, no ritmo da narrativa, que acelera e ralenta sem perder o pulso de um bom gibi de aventura, e nas referências astronômicas que buscou para montar o Magnetar do título (o cadáver de uma estrela que renasce como um diamante gigantesco, emitindo radiações luminosas em rosa e branco pelo espaço afora e pelas páginas adentro). Mas tudo continua a ser uma brincadeira: só entra na narrativa o que é divertido.

O que fica é uma história de náufrago, lutando com sua própria mente para não enlouquecer e encontrar uma saída para a armadilha em que meteu sua vida. É ali, nos confins do espaço sideral — o mais exterior possível, o mais solitário possível — que o Astronauta consegue olhar para si mesmo e aí encontrar seus amigos e amores,  descobrindo “a proximidade por meio da distância”, como diz Amyr Klink no posfácio.

Klink em seu barco no Atlântico, Danilo com seus papéis, seus lápis e suas tintas, a gente que lê essa história, o próprio Astronauta em sua nave redonda feito os astros por onde navega… todo mundo é astro-nauta nessa história, viajando dentro e fora e descobrindo “céu por todos os lados”.

Coisa forte

viralataemacao

Era para aquele universo que os dois haviam sido chamados a produzir um gibi. E não qualquer gibi. Tinha que ser uma história poderosa, capaz de convencer os detentos a trepar de camisinha e largar de mão o pico na veia. Uma história em quadrinhos que ajudasse a reduzir a epidemia de AIDS do maior presídio da América Latina — era a missão de Magrão e Libero.

Tinha que ser “coisa forte”. E isso eles tinham. Desde 1991, quando publicaram a primeira história do Vira-Lata.

Trecho de reportagem que escrevi para o site da Vice. Boa de apurar, boa de escrever. Deve ter ficado boa de ler.

Veteranos eternizados

Matéria que fiz para a revista TAM Airborne (salve Ana Luiza e Leonardo Vinhas!) sobre os bastidores de Jambocks, quadrinho muito bacana sobre a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Foi muito bacana conhecer o roteirista Celso Menezes e a sua luta para contar uma história do jeito que ela deve ser contada.

Cena de “Jambocks”

A guerra chegou sem aviso para Celso Menezes. O primeiro bombardeio o atingiu dentro de uma loja, em 2008, quando encontrou uma edição da revista “National Geographic” sobre a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Foi um ataque certeiro. Logo sua cabeça explodiu em imagens de submarinos nazistas bombardeados no litoral carioca, monomotores com boca de tubarão devorando o ar sobre o canal do Panamá e um avestruz atrevido atacando os inimigos em cima do lema “Senta a pua”. Ele havia encontrado uma história para contar. (mais…)

As taras, digo, tiras de Andrício

Capa da coletânea de tiras do André: prefácio de Allan Sieber

Foi ele quem aprimorou a qualidade da prosa de Dostoiévski, ao aconselhar o velho russo a deixar de confiar no corredor do Word. Não fosse por ele, em vez de A Banda, Chico Buarque teria composto A Bunda, lançando o axé nos anos 60. Passagens como estas da pitoresca biografia de Andre Cintra de Souza, o Andrício, faziam parte de seus blogs Eu não sou virgem, Maria! e Eu não sou mané, Garrincha!, que ele mantinha quando nos conhecemos, há quatro anos. Eu gostava dos dois sites, mas acho que o fã-clube do cara não tinha muitos outros membros além de mim. O trabalho do André só ficou conhecido quando ele resolveu adicionar um traço vagabundo de caneta azul ao seu texto e criou as tiras do Andricio de Souza.com.

As tiras vão agora sair em livro: As 100 primeiras e melhores tirinhas de Andrício de Souza, pela editora Multifoco, com prefácio de Allan Sieber. Andrício está fazendo tanto sucesso que não tem mais tempo para os amigos. Tive que encher muito o saco dele e aceitar várias propostas indecorosas até que Andrício aceitasse me ceder dez minutos da sua concorrida agenda de jornalista desempregado para uma entrevista.

Como uma das condições exigidas por Andrício em troca da entrevista era que eu elogiasse o livro, mesmo sem ler, aí vai. Sim, vale a pena comprar As 100 primeiras e melhores tirinhas de Andrício de Souza. Por dois motivos. Para começar, Andrício tem o olhar de um moleque. Um moleque que sabe fazer a gente rir com o que encontra de mais ridículo por aí, que tanto podem ser uma versão putaria do Jokenpô como a postura de um prefeito que pensa em criminalizar sopões para moradores de rua. Ao mesmo tempo, é um moleque que sabe escolher seus alvos e tem suficiente noção para mirar seu estilingue nas vidraças das coberturas, em vez de acertar as janelas dos barracos.

O outro motivo é pessoal. Se o livro der dinheiro, André finalmente poderá pagar um tratamento psiquiátrico para a sua estranha mania de se deixar fotografar com cachorros de estranhos que conhece na rua. Por isso, amigos, peço que colaborem. Comprem o livro. Não conheço causa mais nobre.

Andrício pratica seu vício grotesco (ele é o que está sem coleira)


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