O hai-kai, por Octavio Paz

Basho poeta japonês

Matsuo Bashô (1644-1694)

De uma forma voluntariamente anti-heróica, a poesia de Bashô nos chama para uma aventura verdadeiramente importante: a de nos perdermos no cotidiano para encontrar o maravihoso. Viagem imóvel, ao término da qual nos encontramos conosco mesmo: o maravilhoso é nossa verdade humana. Em três versos o poeta insinua o sentido deste encontro:

Um relâmpago
e o grito da garça
perdido no escuro.

O grito do pássaro funde-se com o relâmpago e ambos desaparecem na noite. Um símbolo da morte? A poesia de Bashô não é simbólica. A noite é a noite e nada mais. Ao mesmo tempo, é algo mais que a noite, porém um algo que, rebelde à definição, recusa-se a ser nomeado. Se o poeta o nomeasse, se evaporaria. Não é o rosto escondido da realidade; ao contrário, é seu rosto de todos os dias… e é aquilo que não está em rosto algum. O hai-kai é uma crítica da realidade. Em toda realidade existe algo mais do que aquilo que chamamos realidade. Simultaneamente, é uma crítica da linguagem:

Admirável
aquele que diante do relâmpago
não diz: a vida foge.

Crítica do lugar-comum mas também crítica à nossa pretensão de identificar o significar e o dizer. A linguagem tende a dar sentido a tudo o que vemos e uma das missões do poeta é fazer a crítica do sentido. E fazê-la com as palavras, instrumentos e veículos do sentido. Se dissemos que a vida é curta como o relâmpago, não só repetimos um lugar-comum como também atentamos contra a originalidade da vida, contra aquilo que efetivamente a faz única. A verdade original da vida é sua vivacidade e essa vivacidade é conseqüência de ser mortal, finita: a vida está tecida de morte. Porém, ao dizer isso, convertemos em dois conceitos, vida e morte, a vivaz e fúnebre unidade vida-morte. Há uma linguagem que diga essa unidade sem dizê-la? Há, o hai-kai: uma palavra que é a crítica da realidade, uma realidade que é a burla oblíqua do significado. O hai-kai de Bashô nos abre as portas de satori: sentido e falta de sentido, vida e morte, coexistem. Não é tanto a anulação dos contrários nem sua fusão como uma suspensão do ânimo. Instante da exclamação ou do sorriso: a poesia já não se distingue da vida, a realidade reabsorve a signficação. A vida não é nem longa nem curta mas é como o relâmpago de Bashô. Esse relâmpago não nos avisa de nossa mortalidade; sua mesmoa intensidade de luz, semelhante à intensidade verbal do poema, nos diz que o homem não é unicamente escravo do tempo e da morte mas que, dentro de si, leva outro tempo. E a visão instantânea desse outro tempo chama-se poesia — crítica da linguagem e da realidade, crítica do tempo. A subversão do sentido produz uma reversão do tempo: o instante do hai-kai é incomensurável. A poesia de Bashô — esse homem frugal e pobre que escreveu já entrado em anos e que perambulou por todo o Japão dormindo em ermidas e e pousadas populares, esse reconcentrado que contemplava longamente uma árvore e um corvo sobre a árvore, o brilho da luz sobre uma pedra, esse poeta que depois de remendar suas roupas surradas lia os clássicos chineses, esse silencioso que falava nos caminhos com os lavradores e as prostitutas, os monges e as crianças — é algo mais que uma obra literária. É um convite para viver verdadeiramente a vida e a poesia. Duas realidades inseparáveis e que, no entanto, jamais se fundem inteiramente: o grito do pássaro e a luz do relâmpago.

Final de ensaio de Octavio Paz publicado em O Livro dos Hai-kais, antologia bonita para caralho editada em 1980 por Massao Ohno, com ilustrações de Manabu Mabe. Peguei o livro emprestado na semana passada na Biblioteca Sérgio Milliet, do Centro Cultural São Paulo, e entendi porque tanta gente pagava pau para o trabalho do Ohno.