O intestino do Andrício

Para falar da obra-prima poética que é O Intestino Eloquente, livro de poemas e tiras de Andrício de Souza, resolvi fazer uns versinhos também.450xN

Um dia avistei o mano Andrício
Que já foi logo falando:
“Véi, me cansei dessa vida
de trampar de cartunista.
Passar fome desenhando?
Vou largar desse suplício.”

Me contou o que pretendia:
“Se é pra viver na pobreza,
Vou assumir a pindaíba
E viverei de poesia.
Serei fodido na vida,
Mas fodido com nobreza.”

Achei que fosse uma piada
(Dessas que vive contando
E a gente dá umas risadas
Pra preservar sua auto-estima).
Mas logo estaria lançando
Seu próprio livro de rimas.

O intestino eloquente
É o nome da produção.
Do autor, dá para afirmar
Que sabe, perfeitamente
E com muita precisão,
Forma e conteúdo encaixar.

Escreve, como ninguém,
Sobre cocô, peido, mijo
Merda, cu, intestino, lixo.
Além de rimar porcarias,
Andrício sabe fazer rimas
Que são porcarias também.

Pois é aí que Andrício supera
Outros poetas da nossa era:
Gente como Glauco Mattoso
Que escreve sobre chulé
Com um soneto garboso,
Métrica e outros rapapés.

Vai, paga os quarenta reais
Desse livro, camarada.
Velhos poetas consagrados,
Que te trazem mais cultura,
Não te divertirão mais
Que o Ed Wood da literatura.

Um doce ruído
interrompe meu sonho:
gostas de chuva sobre a folhagem.

Bashô

(tradução de Olga Savary)

Quem me dera
um mapa de tesouro
que me leve a um velho baú
cheio de mapas de tesouro.

Paulo Leminski

Quilombos de palavras

Matéria que escrevi para a Revista do Parlamento Paulistano, da Câmara Municipal de São Paulo, um trabalho muito bom de fazer, por causa da ajuda dos amigos e guerreiros Elton, Gisele, Leandro, Lívia, Rodrigo, Rogério, Sândor  e, claro, nossa comandante Maria Isabel.

Saraus levam a periferia para o centro da cultura

Tubardao DuLixo

Texto de Tubarão DuLixo em arte de Rogério Alves

“Vai trabalhar, negrinha! Essa menina vive com o caderno na mão. Olha a vassoura, vai lá limpar. Você sonha muito alto. Desde quando negro vai ser escritor?” Era o que as patroas viviam dizendo para Tula Pilar Ferreira, que trabalhava como doméstica desde os oito anos. Quando as madames saíam, Pilar largava a vassoura e corria para as estantes dos patrões: lia todos os livros que encontrava e depois saía a cantar e a dançar pelos corredores da casa. “Eu cresci com essa arte oculta”, lembra.

A arte que Pilar trazia oculta desde pequena veio à luz em 2002, quando pela primeira vez colocou os pés numa novidade: um sarau de poesia que rolava ali na sua quebrada , em Taboão da Serra (Grande São Paulo), feito pelos próprios moradores da comunidade. Era o Cooperifa, criado um ano antes pelo poeta Sérgio Vaz — e que no ano seguinte mudaria para o Jardim São Luís, na zona sul da capital, onde está até hoje. O encontro deu a chave para Pilar nascer como poeta. Passou a escrever e declamar seus poemas pelos saraus afora, e, de verso em verso, já publicou um livreto, Palavras inacadêmicas. “As palavras que cuspo estavam entranhadas dentro de mim”, conta Pilar, que se define como “mãe de três filhos, poetisa e 29 anos para sempre”.

Pilar não está nada oculta nesta noite de 5 de setembro de 2012, diante da plateia do Sarau da Ocupa, uma das dezenas de saraus da periferia que, após a iniciativa pioneira do Cooperifa, passaram a pipocar em todas as regiões da cidade. O microfone está aberto para quem quiser falar, como é de lei nos saraus. Na sua vez, Pilar declama, com a voz e com a dança do corpo, um poema sobre sua avó escravizada: “Tenho no sangue, na ancestralidade, gente que foi escrava de verdade. Minha avó, chicoteada aos doze anos de idade. Apanhou por rebeldia, desobediência. Sinhá não teve piedade, somente maldade. Inconsciência. Então rufem os tambores e batam palmas. A africanidade está cravada em minha alma…” O poema é saudado com aplausos, o único cachê dos poetas de saraus.

Sem-teto leem poemas no Sarau do Ocupa

Sem-teto leem poemas no Sarau do Ocupa (foto de Gute Garbelotto/CMSP)

Atualmente, pelo menos 20 saraus ocorrem todo mês na periferia paulistana, organizadas pela mesma gente que os patrões de Pilar achavam que nunca seria capaz de escrever. Os dados aparecem na Agenda Cultural da Periferia, publicada pela ONG Ação Educativa, que também inclui eventos como o Sarau da Ocupa — que, mesmo ocorrendo na Avenida São João, em pleno centro de São Paulo, também é considerado um evento periférico por ocorrer num prédio ocupado por famílias sem-teto da Frente de Luta por Moradia, ameaçadas de despejo por conta de uma ação de reintegração de posse. “Nós somos a periferia do centro, porque estamos cercados de tudo e não temos nada”, afirma o educador popular Ruivo Lopes, 33 anos, responsável pelo sarau. Natural da parte pobre da Baixada Santista, Ruivo conheceu cedo a vida entre cortiços e despejos e, ao engajar-se na luta dos movimentos de moradia, decidiu adotar a cultura como arma de luta. “Com os saraus, as senzalas tomaram de assalto a literatura, que até então era feita na casa-grande”, analisa.
(mais…)

Sobre o sino do templo
repousa e dorme
a borboleta.

Buson

(tradução de Olga Savary)

Não à desocupação da São João

Eles chegaram lá quando quase tudo estava morto. Ratos e baratas, muitos deles, reinavam há duas décadas como os únicos hóspedes do Hotel Columbia, velho prédio esquecido pelo seu proprietário no centro de São Paulo. “Tinha dois metros de entulho no térreo, tudo coberto de cocô de pombo. Louças sanitárias e pias, tudo quebrado. Não tinha um fio elétrico, não tinha canos, não tinha nada”, lembra Neci Maria de Oliveira, 68 anos, 6 filhos, 25 netos e 10 bisnetos. Ela chegou ao local em outubro de 2010, junto com outras famílias que, lideradas pela Frente de Luta por Moradia, uniram-se para transformar em lar os seis andares de concreto que, até então, não tinham outro uso que não fosse acomodar sujeira.

Ali as famílias retiraram o lixo e acomodaram seus móveis, seus filhos e seu cotidiano. Ali refizeram a hidráulica e puxaram da rua os fios para iluminar seu dia-a-dia. Enquanto iam reconstruindo o prédio, os novos moradores iam refazendo a si mesmos. Arrumaram empregos na região, matricularam seus filhos nas escolas próximas. Num lugar que estava morto, criaram um sistema próprio de gestão: o edifício da Ocupação São João é uma comunidade, na qual todos são seus próprios zeladores e as decisões que afetam a todos são tomadas em assembleias regulares, no mesmo espaço em que os moradores aprenderam a transformar seu tempo em arte e cultura.

O sarau de poesia que acontece a cada duas semanas, sempre às quartas-feiras, virou um espetáculo que atrai gente de várias partes de São Paulo, misturando poetas de outros saraus e de outros quebradas com os próprios poetas da ocupação. A dona Nice é presença certa em todo Sarau da Ocupa e em vários outros saraus pela cidade. “Vivem me chamando para ir a outros saraus e eu vou, porque adoro poesia”, conta Nice, apelidada Vó da Ocupa, que se orgulha de sua descoberta da arte e do bonito apartamento que montou no edifício, todo arrumado, decorado com flores e um pôster do Corinhtians.

Além do sarau, o prédio é lugar de várias outras ações culturais, incluindo cineclube, festival de rock, mediação de histórias infantis, e todas servem para falar, pensar e sentir as questões do seu dia-a-dia. No sarau da semana passada, eu vi como os poemas se misturavam com manifestos contra a ameaça de desocupação do prédio e manifestos contra a morte dos guarani-kaiowás no Mato Grosso do Sul, e tudo combinava porque tudo era poesia, porque a poesia é vida e é luta.

E o poema da hora, na Ocupação São João, é evitar a reintegração de posse do imóvel, ordenada pela Justiça e marcada para a trágica data de 11 de setembro. É uma tragédia que pode e deve ser evitada. Se a desocupação ocorrer, quem perde não são apenas as 85 famílias que irão para a rua. Quem perde é a cidade de São Paulo. Se o prédio for desocupado para dar lugar a mais um condomínio feito de vidas isoladas e empilhadas umas sobre as outras, todos nós perdemos a chance de conhecer e replicar um jeito mais humano e pleno de gerir a vida num agrupamento humano.

Deixem a Vó da Ocupa ficar!

“Ver a gente triste é o que sistema quer”, disse Ruivo Lopes, um dos responsáveis pelas atividades culturais da Ocupação São João, comentando a ameaça de despejo, durante o Sarau do Ocupa na quarta-feira passada. “Então, não vamos ficar tristes. Cada vez que a gente sorri, o sistema treme.”

E na mesma noite Marcelo, um dos poetas presentes ao sarau, aproveitou para falar de esperança pelas palavras de Solano Trindade, um avô dos atuais poetas periféricos:

Nem tudo está perdido irmãos
nem tudo está perdido amadas
o sol voltará a nos trazer calor

Esta é a mensagem nova
que o poeta nos traz
para que desperteis para a luta
na hora da vossa angústia
irmãos e amadas do meu século!

O que dá para fazer? Há um abaixo-assinado contra a desocupação rolando aqui. Assine. E espalhe a notícia. Não deixe dona Nice, a Vó da Ocupa, perder o seu apartamento, todo arrumado, decorado com flores e um pôster do Corinhtians.

Caracol

Caracol,
docemente, docemente,
escala o Fuji!

Issa

(tradução de Olga Savary)

O hai-kai, por Octavio Paz

Basho poeta japonês

Matsuo Bashô (1644-1694)

De uma forma voluntariamente anti-heróica, a poesia de Bashô nos chama para uma aventura verdadeiramente importante: a de nos perdermos no cotidiano para encontrar o maravihoso. Viagem imóvel, ao término da qual nos encontramos conosco mesmo: o maravilhoso é nossa verdade humana. Em três versos o poeta insinua o sentido deste encontro:

Um relâmpago
e o grito da garça
perdido no escuro.

O grito do pássaro funde-se com o relâmpago e ambos desaparecem na noite. Um símbolo da morte? A poesia de Bashô não é simbólica. A noite é a noite e nada mais. Ao mesmo tempo, é algo mais que a noite, porém um algo que, rebelde à definição, recusa-se a ser nomeado. Se o poeta o nomeasse, se evaporaria. Não é o rosto escondido da realidade; ao contrário, é seu rosto de todos os dias… e é aquilo que não está em rosto algum. O hai-kai é uma crítica da realidade. Em toda realidade existe algo mais do que aquilo que chamamos realidade. Simultaneamente, é uma crítica da linguagem:

Admirável
aquele que diante do relâmpago
não diz: a vida foge.

Crítica do lugar-comum mas também crítica à nossa pretensão de identificar o significar e o dizer. A linguagem tende a dar sentido a tudo o que vemos e uma das missões do poeta é fazer a crítica do sentido. E fazê-la com as palavras, instrumentos e veículos do sentido. Se dissemos que a vida é curta como o relâmpago, não só repetimos um lugar-comum como também atentamos contra a originalidade da vida, contra aquilo que efetivamente a faz única. A verdade original da vida é sua vivacidade e essa vivacidade é conseqüência de ser mortal, finita: a vida está tecida de morte. Porém, ao dizer isso, convertemos em dois conceitos, vida e morte, a vivaz e fúnebre unidade vida-morte. Há uma linguagem que diga essa unidade sem dizê-la? Há, o hai-kai: uma palavra que é a crítica da realidade, uma realidade que é a burla oblíqua do significado. O hai-kai de Bashô nos abre as portas de satori: sentido e falta de sentido, vida e morte, coexistem. Não é tanto a anulação dos contrários nem sua fusão como uma suspensão do ânimo. Instante da exclamação ou do sorriso: a poesia já não se distingue da vida, a realidade reabsorve a signficação. A vida não é nem longa nem curta mas é como o relâmpago de Bashô. Esse relâmpago não nos avisa de nossa mortalidade; sua mesmoa intensidade de luz, semelhante à intensidade verbal do poema, nos diz que o homem não é unicamente escravo do tempo e da morte mas que, dentro de si, leva outro tempo. E a visão instantânea desse outro tempo chama-se poesia — crítica da linguagem e da realidade, crítica do tempo. A subversão do sentido produz uma reversão do tempo: o instante do hai-kai é incomensurável. A poesia de Bashô — esse homem frugal e pobre que escreveu já entrado em anos e que perambulou por todo o Japão dormindo em ermidas e e pousadas populares, esse reconcentrado que contemplava longamente uma árvore e um corvo sobre a árvore, o brilho da luz sobre uma pedra, esse poeta que depois de remendar suas roupas surradas lia os clássicos chineses, esse silencioso que falava nos caminhos com os lavradores e as prostitutas, os monges e as crianças — é algo mais que uma obra literária. É um convite para viver verdadeiramente a vida e a poesia. Duas realidades inseparáveis e que, no entanto, jamais se fundem inteiramente: o grito do pássaro e a luz do relâmpago.

Final de ensaio de Octavio Paz publicado em O Livro dos Hai-kais, antologia bonita para caralho editada em 1980 por Massao Ohno, com ilustrações de Manabu Mabe. Peguei o livro emprestado na semana passada na Biblioteca Sérgio Milliet, do Centro Cultural São Paulo, e entendi porque tanta gente pagava pau para o trabalho do Ohno.